Não era de hoje minha vontade de assistir o show de Maria Bethânia e Omara Portuondo. Eis que ao chegar na locadora há umas duas semanas imediatamente levei-as para casa, e, junto com minha avó, quase nonagenária como Omara, encantamo-nos com essas moças.
Algo indescritível acontece além de uma banda impecável e duas cantoras de renome. Há uma energia em torno de Maria Bethânia que emana uma enorme luz deixando a nós meros e mortais espectadores como se em transe. Em um nível elevado. Bethânia não é só uma cantora. Bethânia é inteira, é intensa é simples e canta como se estivesse passando uma receita de bolo para a prima.
Me lembro que quando pequena eu não gostava dela. Meu pai tinha um disco (LP!!) com a foto dela no famoso show do Teatro Opinião em meados de 1960, quando a irmã de Caetano foi convidada para substituir Nara Leão. Ela havia sido vista cantando em Salvador, para onde se mudou com o irmão e, o mesmo a acompanhou (como condição imposta pelos pais) ao Rio de Janeiro para uma pequena temporada no teatro de bolso do Centro Popular de Cultura da UNE comandado pelo Vianinha. Ou seja, embora muitos pensem ao contrário, na verdade, Caetano é que é o ‘irmão de Bethânia’ . Ela veio antes dele mesmo sendo caçula.
Mas voltando à foto, ela aparecia à frente de Zé Ketti com a expressão muito firme, os cabelos bem divididos e presos em coque. No interior do disco, ela cantava muito brava uma musica que diz: ‘Carcará, pega, mata e come’. Na minha cabeça de criança ela era praticamente o ‘homem do saco’, ou o ‘bicho-papão’ com essa coisa de ‘pega, mata e come’.
Então no final dos ans 80 ela fez um show que eu não fui, mas, minha mãe foi e me deu o CD, onde declamava Fernando Pessoa e cantava a musica do Dom Quixote:
‘Sonhar, mas um sonho impossível / Lutar, quando é fácil ceder / Vencer, o inimigo invencível / Negar, quando a regra é ceder / Sofrer, a tortura implacável / Romper, a incabivel prisão / Voar, num limite improvavel / Tocar, o inacessível chão./ É minha lei, é minha questão / Virar esse mundo, pisar esse chão / Não me importa saber se é terrível demais / Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz / Se amanhã esse chão que beijei for meu leito e perdão / Vou saber se valeu delirar e morrer de paixão / E ASSIM, SEJA LÁ COMO FOR / VAI TER FIM A INFINITA AFLIÇÃO / E O MUNDO VAI VER UMA FLOR / BROTAR / DO IMPOSSÍVEL / CHÃO’.
Bethânia passou de carcará ao romântico herói de Cervantes, sem perder a força do primeiro, somando a sensibilidade do segundo.
O tempo passou e minha trajetória de vida e arte me mostravam cada vez mais a grandiosidade dessa filha de Dona Canô. Encontrei nessa breve estrada uma pessoa que dividiu durante certo tempo essa paixão comigo. Uma grande amiga: Mônica Dranger. Juntas fomos ao delírio no Credicard Hall quando compramos os últimos igressos na última fileira do último andar para assisti-la com sua conterrânea contemporânea Gal Costa. Desculpe Gal. Mas a ‘Força Estranha’ de Bethânia bate mais forte. “Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo (…) por isso uma força, me leva a cantar. Por isso uma força estranha, no ar. Por isso eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha”.
Não era a primeira vez que ela interpretava musicas do Rei Roberto. Afinal, algumas das canções dele só servem nos pulmões dela. Há inclusive aquelas músicas que já nao são mais do Rei, são daquela que ele mesmo chama de ‘minha rainha’. Fera Ferida, As Canções que Você Fez Pra Mim, Costumes.
Essa é Maria Bethânia. E realmente ela e sua turma (Caetano, Gil, etc) é Brasil como Omara e sua turma (Buena Vista Social Club) são Cuba.
Omara, Bethânia, Compay, Tom, Ibrahim, João. Célia Cruz é Sério Mendes. Há pouco tempo assisti o documentário ‘A bandeira que canta’ sobre vida e obra de Célia Cruz que não pode voltar à Cuba comunista depois da revolução tendo feito carreira nos Estados Unidos e difundido assim a música cubana pelo mundo. Para muitos, Célia é Cuba. Enganan-se, Célia é internacional. Tem costumes e linguagem norte-americanos. Omara não. Omara é Cuba. Omara ficou.
A enorme semelhança de temas nas canções interpretadas emocionam a ambas e à platéia que não exita em ovacionar. Não se sabe se estamos na realidade caribenha ou sulista. A latinidade prevalece.
Dona Omara termina o grande espetáculo perguntando para sua partner se quer ‘Marambaia’. Nitidamente essa cubana que foi calada por anos e depois serviu de propaganda para o mesmo governo, se divertiu com a modinha. E foi desse jeito:
‘Eu tenho uma casinha lá na Marambaia, fica na beira da praia só vendo que beleza. Tenho uma trepadeira que na primavera, fica toda florescida de brincos de princesa. Quando chega o verão, eu sento na varanda, pego meu violão e começo a cantar. E o meu moreno que está sempre bem disposto senta ao meu lado e começa a cantar.
Quando chega a tarde, um bando de andorinhas voa em revoada fazendo o verão. E lá na mata o sabiá gorgeia linda melodia pra alegrar meu coração. As seis horas o sino da capela toca as badaladas da Ave Maria. A lua nasce por detrás da serra anunciando que o dia acabou’.
Se eu soubesse que o ‘carcará’ - ‘homem do saco’ era Bethânia, eu, ao contrário das outras crianças, ia aprontar muito mais e nem dormiria para que ela viesse me buscar.