domingo, 25 de outubro de 2009

33a. MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO - O NATIMORTO


"...Natimorto, grande injustiçado do Festival do Rio..."

"O júri fez uma distribuição absurda dos prêmios. Todo mundo ganhou seu Redentor, todo mundo menos o melhor filme desta edição, que, cada vez me convenço mais, é o 'Natimorto', de Paulo Machline. O júri, decididamente, não gostou de 'Natimorto'. Sei até que o filme teve apenas um defensor, e até sei quem foi, mas prometi não contar. Houve uma tomada de posição dos jurados - contra. Eu, se fosse essa pessoa, teria rodado uma baiana legal e, se era pra fazer reforma agrária, o Machline ia sair com seu quinhãozinho do latifúndio. como não? "

Luiz Carlos Merten, em seu blog no Estadão.

UM PURO.

Em Cuba costuma-se dizer 'um puro' para os famosos charutos da ilha. Mas os originais, frescos, bem acabados e feitos de puro tabaco enrolado em folha de uva ressecada. Fumar 'um puro' é quase sagrado, é quase religioso e as vezes ritualistico. As mães e pais de santo por exemplo precisam da fumaça do charuto para videnciar. As vezes através de cartas, as vezes através de orixás, mas, sem o tabaco nada acontece.
Em Natimorto, de Paulo Machline (que já concorreu a Oscar pelo curta ficção 'Histórias de Futebol' em 2003), o personagem de Lourenço Mutarelli (que é o verdadeiro criador do Natimorto) vive em depressão: não gosta de sexo (não se interessa, quer ser assexuado), é traido pela mulher e se separa dela e, para fugir do mundo se tranca em um quarto de hotel com uma cantora em início de carreira apenas como 'companheiros de quarto', sem qualquer proximidade física, apenas intelectual e psicológica.
Sua maior crença acaba virando uma espécie de TOC: todos os dias de manhã, junto com o café-da-manhã, ele abre seu maço de cigarros do dia e olha atrás a imagem e os dizeres anti-tabagistas de campanhas anti-fumo. Compara as imagens com as cartaz do tarô tentando identificar semelhança entre ambas e assim fazer sua própria vidência.
Além do tema por si só ser extremamente surpreendente, o filme traz outras boas como o fato de ser interpretado pelo próprio autor da história que originou o roteiro. Lourenço não é ator mas já participou de alguns curtas. Para o casal principal chegaram a ser cotados Marco Ricca e Mariana Ximenes. Simone Spoladore no entanto ficou com a parte feminina da dupla. Lorenço chegou a ser cogitado para premio de melhor ator. Não é o caso. Precisamos entender que ele não é ator, por melhor que seja. Isso é claro. Não há técnica suficiente mesmo para alguém que está no meio artístico e que com certeza vendo 'de fora' saberia encontrar alguns problemas de interpretação.
Nada no entanto atrapalha o efeito de frases cortantes. O personagem pensa. O ator pensa e isso basta!
Me chamou muito a atenção a direção de arte que, não sei dizer se realmente é boa ou é excelente. A ambientação em um quarto de hotel, no meu entender decadente mas com uma certa pompa, é bastante coesa. Nada sai do lugar. Nada a mais. Nada a menos. Combinou perfeitamente com a luz do filme: verde vinho.
A fotografia e as idéias de câmera de Lino (não me lembro o sobrenome) são sensacionais e se destacam de maneira diferente em vários momentos. Seja por usar a câmera de um jeito que cause enjôo no espectador (o mesmo enjôo do personagem), seja por interpretar o que se diz (nos momentos de reflexão do personagem o texto é narrado), seja por remeter às 'contracapas' dos maços de cigarro.
Citei por aí que o filme tem narração? Alias de uma voz bem conhecida, identificável mas novamente surpreendente: Nasi, do Ira!
Na primeira cena um menino anda em um quintal e pula em cima de um tapume que está fechando um poço. Cai. Sobe uma fumaça de cigarro com a tela black e entre o branco e o negro da tela o título do filme. A cena aparentemente não tem ligação nenhuma com as cenas conseguintes até um momento onde o personagem principal conta a história de um primo que quando crianças caiu em um poço que diziam haver um montro.
Durante o período que o menino ficou aguardando que o retirassem dali, a luz incidente pela fresta do buraco no resto de água que havia no poço, fez com que o garoto enchergasse a própria imagem refletida. Como não era nítida e sim uma penumbra, pensou tratar-se do tal monstro do poço. Poderíamos pensar em 'O médico e o monstro', onde ambos são apenas um e este pensa ser os dois por perceber-se no segundo substantivo. Poderíamos pensar em Narciso que se apaixonou por si próprio ao ver seu reflexo na água. Poderíamos pensar em Deus que nos fez a sua imagem e semelhança segundo a bíblia e que é muitas vezes é a 'mola do fundo do poço', ou ainda em Lúcifer, o comandante das trevas, o anjo maldito. É assim que a história toda se amarra. Do início ao fim, tudo isso caberia em Natimorto.
Natimorto, é aquele que não nasceu. Que passou da vida intra-uterina direto para a morte. Sua alma não teve alterações. Ele permaneceu 'um puro'.

Serviço:
'O Natimorto', de Paulo Machline, com Lourenço Mutarelli, Simone Spoladore, Betty Goffman, Nasi. Assistência de Produção Executiva~: Mariana Ianni, São Paulo - 2009 - 116'
Na Mostra: 27/10 (terça-feira) às 15h40 no Cinema da Vila e 29/10 (quinta-feira) no Espaço Unibanco Arteplex 4. Estréia em março de 2010.

Para marofar:
Teatro:
- Antes de virar roteiro de filme, 'O Natimorto' foi encenado no Espaço dos Satyros com adaptação de Mário Bortolloto e no elenco Miltinho (sósia de Mutarelli e vice-versa), a Manú (Maria Manoella) e a Martha Nowill. Leia sobre.
Quadrinhos:
- Mutarelli é 'macaco véio' do mundo das HQs. Vale a pena conferir seu trabalho clicando aqui.
Cinema:
- Em 'O Cheiro do Ralo' de Heitor Dhalia, Lourenço Mutarelli já havia tido uma pequena participação. Mais uma vez, a história é sua.

Classificação por marofada: para soltar fumaça em círculos!

Um comentário:

  1. "Foi da não existência para a não existência protegido no interior de sua mãe. Puro"

    Vale ler também "O Natimorto - um musical silencioso" de Lourenço Mutarelli, recentemente reeditado pela Companhia das Letras

    E só no Santa Marofa a assistente de produção executiva ganha destaque nos créditos! É isso aee! Gostei, Lalá! ;)
    Beijo

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